1ª Mensagem de João Evangelista e do abade Lamennais
contida no livro: "Roma e o Evangelho" feito pelo Círculo Cristiano de Lérida e traduzido por D.Jose Amigo y Pellicer
Mensagem recebida em Março de 1874
I
Elevei-me para além do presente, meus irmãos, e meu espírito descortinou. . .
Que descortinou meu espírito?
Descortinou o passado e algo do futuro.
O meu espírito viu primeiro, a confusão, o estado caótico primitivo do planeta em que habitais, e minha alma admirou o poder de Deus na esfera da Humanidade.
O caos terrestre estava imerso na luz, na harmonia universal, no fecundo seio do Criador.
Que viu mais?
Viu a nuvem condensar-se, e o caos obedecendo ao impulso da única lei que governa o Universo. A Terra ia surgindo da confusão e rolava e rolava pelo infinito, banhada nos raios do Sol e envolta na luz de miríades de formosíssimas estrelas – e minha alma admirou o poder de Deus em sua sabedoria incriada.
Que mais viu?
Viu levantarem-se da Terra os vapores e a chuva cair torrencialmente, resfriando-a, fecundando-a e preparando-a para os seus grandes destinos. E seu seio virginal; obediente à suprema lei das harmonias, recebia os primeiros germens, a semente da vida, destinada a fecundar os organismos – e minha alma admirou o poder de Deus, em sua inefável providência.
Que mais viu?
Viu a Terra soerguer-se do fundo das águas e separarem-se os mares dos continentes, e o fluído vivificante elaborar; no segredo da Natureza e no mistério das forças emanadas da suprema lei, os organismos primitivos. Um princípio sem princípio; anterior e superior a toda a força, uma lei anterior e superior a toda a lei, uma causa anterior e superior a toda causa, uma inteligência anterior e superior a toda a inteligência, uma vontade anterior e superior a toda a vontade, penetrava e ligava tudo – e minha alma admirou o poder de Deus e sua incomparável imensidade.
Que mais viu?
Viu os raios do Sol banhando as primeiras colinas da criação e produzindo um oceano de pontos luminosos na superfície agitada das águas. Que bela e majestosa solidão! As colinas da Terra e o fundo dos mares se cobriam e se matizavam com as encantadoras primícias da vegetação. – e minha alma admirou o poder de Deus e a formosura de suas obras.
Que mais viu?
Viu grandes abalos e espantosos cataclismos; a Terra agitar-se e arrojar de suas entranhas, nuvens candentes e turbilhões de fumo e fogo, como montanhas, e as águas romperem os diques naturais, inundando a Terra, como se corressem a apagar aquele incêndio universal, por meio de um dilúvio universal. E, nem por isso, deixava o globo de seguir seu curso, porque os cataclismos entravam nos efeitos da primeira e única lei imposta à substância material – e minha alma admirou o poder de Deus e sua admirável previsão.
Que mais viu?
Viu surgir de novo a ordem e a harmonia do seio da confusão, desenhar-se no firmamento o arco-íris, renascerem as plantas e transformarem-se mais ricas de frescura e louçania, embelezando mais e mais a superfície terrestre. A nuvem, que circundava e prendia a Terra, ia-se purificando e adelgaçando, tornando-se mais sutil e transparente. O planeta tinha soterrado os enormes boqueirões que deram passagem ao fogo de suas entranhas – e minha alma admirou o poder de Deus, e sua esmagadora grandeza.
Que mais viu?
Viu, com surpresa, e percorreu toda a escala ascendente da vegetação, em seus inumeráveis tipos, desde os mais simples e imperfeitos até os mais perfeitos e complicados. No cimo da montanha, no ápice da pirâmide, no mais elevado dos tipos, pareceu adivinhar que o desenvolvimento das plantas não era só devido ao fluido, ao principio vivificante, mas que também intervinha um fluido, um princípio, porventura mais etéreo e celestial. E fixando, confusa e impotente, os olhos na soberba vegetação que cobria as terras primitivas – minha alma admirou o poder de Deus e seus insondáveis mistérios.
Que mais viu?
Minha alma ficou deslumbrada e cega, porque quis desafiar a luz do Sol. Deixai que minha alma recobre a vista que perdeu, tentando surpreender um dos segredos de Deus.
II
Ao restabelecer-se a visão, já não era só os vegetais os seres viventes que povoavam a superfície da Terra e os abismos do oceano. As aves se envolviam agitadas por suaves brisas e cantavam nas ramagens; os animais corriam, cada um segundo seus instintos e necessidades, pelos montes e vales, por desertos e selvas, pelos bosques e margens dos rios; os peixes desfilavam pelos seios das águas, e, sobre todos esses seres, dotados de vida e de movimento, destacava-se outro mais nobre e privilegiado, o rei de todos – o homem.
Tinha mediado um parêntesis, talvez de muitos milhares de séculos. Este parêntesis não pertence à criatura; é do domínio da Sabedoria Infinita.
Donde saíram os peixes, as aves e os animais terrestres? Qual foi o princípio de sua formação e desenvolvimento? Vieram do alto ou surgiram do pó?
Meu espírito não o tinha visto, porém minha alma parecia ter algo adivinhado, mais puro que o impulso vivificante, nos primeiros e mais elevados elos da cadeia vegetal.
Livrai-nos de firmar juízos sobre minhas palavras, quanto ao misterioso nascimento dos animais. Meu espírito estava cego; e que confiança merece a vista de um pobre cego?
Ascendendo, pelo estudo, à escala ascendente do reino animal, em seus inumeráveis tipos, vi com surpresa, nos mais perfeitos, algo que não podia explicar, algo que parecia escapar e parecia estranho à natureza animal.
Meu Deus! quão pequenos somos a teus pés!
Donde havia saído o homem? Qual tinha sido o principio de sua formação e de seu desenvolvimento? Veio diretamente do pensamento de Deus ou levantou-se do pó por meio de uma série de transformações sucessivas?
Meu espírito não o tinha visto, porém minha alma não podia esquecer aquele "algo indefinível", que tinha como que adivinhado nos animais superiores.
Luz – luz - muita luz – muitíssima luz! porém a luz reside em Deus.
Eu tinha visto, e, eu via vegetais como minerais e minerais com vegetais, animais como vegetais e vegetais como animais, homens que participam muito do animal e animais que participavam alguma coisa do homem.
Livrai-vos de assentar juízos sobre minhas palavras quanto ao misterioso nascimento do homem. Meu espírito estava cego; e que confiança merece a vista de um pobre cego!
Eu via o homem, e via nele o sentimento, a vontade e a luz; via o animal, e via nele a sensação, o impulso e o instinto; via o vegetal, e via nele a tendência para a conservação. E perguntava a mim mesmo:
O sentimento, a vontade e a luz são criações independentes e primitivas ou são uma criação única, já modificada ou transformada?
E, ao pensar que os três caracteres distintivos da natureza humana poderiam confundir-se em sua raiz; acudiu fugitivamente à minha alma a idéia de que podia ser a unidade, a identidade, o limite de sua depuração. E perguntava a mim mesmo:
São, porventura, o sentimento, a sensação depurada e transformada – a vontade, o impulso depurado e transformado? Serão, porventura, o sentimento e a sensação, a vontade e o impulso, a luz e o instinto – depurações e transformações daquela tendência para a conservação iniciada no organismo vegetal?
Ignoro; não sei; não quero; não posso; não me atrevo a sabê-lo; porque Deus pôs um véu entre o seu segredo e os olhos de meu espírito. Minha alma nada sabe acerca do princípio e do nascimento do homem!
III
Adão, Adão, onde estás?
Meus olhos procuravam-no e não o viam; eu o chamava e ele não me respondia.
Adão ainda não tinha vindo.
Onde estava Adão?
Não me aparecia; Moisés tão pouco vinha, para dizer-me onde se achava escondido o primeiro homem da Gênesis.
Porque eu via um homem, dois homens, muitos homens e, no meio deles, não via Adão, e nenhum deles conhecia Adão.
Eram os homens primitivos, esses que meu espírito absorto, contemplava.
Era o primeiro dia da Humanidade; porém que humanidade, meu Deus!....
Era também o primeiro dia do sentimento, da vontade e da luz; mas de um sentimento que apenas se diferenciava da sensação, de uma vontade que apenas alcançava desvanecer algumas sombras do instinto.
Primeiro que tudo, o homem procurou o que comer, e comeu; após, procurou uma companheira – juntou-se com ela, e tiveram filhos, parecidos com o pai e com a mãe; finalmente, ele ergueu os olhos na direção do céu, e, tombando pesadamente sobre a terra, dormiu.
Quão nebuloso e triste é o primeiro dia da Humanidade, encarado pelo tempo de hoje! . . .
Meu espírito procurava o homem, e, descobrindo-o, retrocedia. Volvia a observá-lo, e de novo retrocedia. Porque o meu espírito não via o homem do Paraíso; ele via muito menos que o homem, coisa pouco mais que um animal superior.
Seus olhos não refletiam a luz da inteligência; sua fronte desaparecia sob o cabelo áspero e rígido da cabeça; sua boca; desmesuradamente aberta prolongava-se para diante; suas mãos pareciam-se com os pés, e freqüentemente tinham o emprego destes. Uma pele pilosa e rígida cobria as suas carnes duras e secas, que não dissimulavam a fealdade do esqueleto.
Oh! se tivésseis visto, como eu, o homem do primeiro dia, com seus braços magros e esquálidos caídos ao longo do corpo, e com suas grandes mãos pendidas até os joelhos, vosso espírito teria fechado os olhos para não ver, e procuraria o sono para esquecer.
Não obstante, não deixeis de glorificar a Deus; porque Ele é a sabedoria infinita, e o homem primitivo é uma manifestação – um raio da luz eterna da sabedoria infinita.
Deixai seguir a obra de Deus. Seu termo, como o de todas as obras do Senhor, é a pureza e a perfeição.
O homem primitivo; visto de hoje, é um espetáculo que fere de horror e desolação; visto dos primeiros séculos do nascimento dos animais, é uma esperança luminosa, uma nuvem rasgada no horizonte da eternidade.
Amemos e adoremos a Deus.
O homem dos primeiros dias da Humanidade comia e bebia, porém não comia nem bebia como homem; andava, porém não andava como homem; via, porem não via como homem; amava e odiava; porem não amava nem odiava como homem.
Seu comer era como o devorar; bebia abaixando a cabeça e submergindo seus grossos lábios nas águas; seu andar era pesado e vacilante, como se a vontade não interviesse; seus olhos vagavam, sem expressão, pelos objetos, como se a visão não se refletisse em sua alma; e seu amor e seu ódio, que nasciam de suas necessidades satisfeitas ou contrariadas, eram passageiros como as impressões que se estampavam em seu espírito, e grosseiros como as necessidades em que tinham sua origem.
O homem primitivo falava, porém não como homem. Alguns sons guturais, acompanhados de gestos, os precisos para responder às suas necessidades mais urgentes, eram a linguagem do homem do primeiro dia.
Fugia da sociedade e buscava a solidão. Ocultava-se da luz e procurava indolentemente, nas trevas, a satisfação de suas exigências naturais.
Era escravo do mais grosseiro egoísmo. Não procurava alimento senão para si. Chamava a companheira em épocas determinadas, quando eram mais imperiosos os desejos da carne; e, satisfeito o apetite, retraía-se de novo à solidão, sem mais cuidar da companheira e dos filhos.
Era extremamente preguiçoso. Estendido na terra; alimentava-se do que estava ao alcance das suas mãos; e, sempre que se punha em movimento, seus gestos revelavam repugnância e desgosto.
Passava pelo cadáver de outro homem, fixava nele um olhar estúpido, e ia além.
Nunca ria; nunca os seus olhos derramavam lágrimas. O seu prazer era um grito, a sua dor era um gemido.
O seu pensamento era superficial, incerto e fugitivo; as suas idéias eram elementares e confusas; não deixavam em sua alma outro vestígio mais que aquele que em vós deixa um sonho incoerente e fugaz.
O pensar fatigava-o; ele fugia do pensamento como fugia da luz.
Considerava os animais terrestres como iguais, em natureza, ao homem, e considerava as aves como superiores ao homem.
O céu girava e as estrelas luziam por cima de sua cabeça, mas ele não percebia o movimento do céu, nem o brilho das estrelas.
Para ele não havia terra além da que divisavam seus olhos, nem outros seres além dos que descobriam os seus toscos sentidos.
Vivia sem conhecer o motivo da sua vida; morria sem ter jamais pensado em morrer.
Oh! se houvésseis visto, como eu, o homem do primeiro dia, com os seus longos e esquálidos braços caídos, e com as suas grandes mãos que chegavam até aos joelhos, o vosso espírito teria fechado os olhos para não ver, e buscaria o sono para esquecer.
Não obstante, não deixeis de glorificar Deus porque Ele é a sabedoria infinita, e o homem primitivo é uma manifestação, um raio da luz incriada, da sabedoria infinita.
IV
Tinha findado o primeiro dia do homem, dia de séculos, porque no relógio da humanidade os dias são segundos de segundos, e os séculos de séculos são dias.
Amemos e glorifiquemos a Deus e elevemos-lhe cânticos. A Humanidade deu um passo nas vias do progresso.
Como penetra no coração o rocio da consolação! Como brilham para os espíritos os primeiros albores da luz! Como desperta a alma, trêmula de emoções, ao doce pressentimento de uma felicidade a conquistar nos séculos! ...
O homem primitivo não é o homem; a humanidade do primeiro dia não é a humanidade.
O primeiro homem é o primeiro degrau da escada de Jacob: mal se destaca do pó.
O homem é a lei, é o progresso, é o aperfeiçoamento, é a elevação pela matéria, é a purificação pela luz, é o melhoramento pelo mérito, é a felicidade pelo dever, é a palavra de Deus que subsistirá pela eternidade.
Se o homem do primeiro dia fôsse o homem, não teria ele saído do primeiro dia. E o homem saiu do primeiro dia.
Meu espírito vê o corpo do homem, e não cerra os olhos para não vê-lo; contempla sua alma, e não repele a imagem de sua alma.
Começou a luta do espírito com a matéria, e o princípio espiritual avança, ainda que pouco, porém avança.
A primeira jornada augura a vitória do espírito sobre a carne; é o ponto de partida – o princípio do fim do reinado da matéria – e o primeiro anúncio do reinado do pensamento de Deus.
Nessa luta, eternamente secular, o corpo é o crisol do espírito, e o espírito é o modelador, o artífice do corpo.
Depois do primeiro dia da Humanidade, o corpo do homem aparece menos feio, menos repugnante à contemplação de minha alma.
Sua fronte começa a debuxar-se na parte superior do rosto, quando o vento açoita e levanta as ásperas melenas que o cobrem.
Os seus olhos são mais vivos e transparentes, o seu nariz é mais afilado e levantado e a sua boca é menos proeminente. Um princípio de expressão se manifesta no conjunto.
Os seus braços são menos longos e esquálidos, suas carnes são menos secas, suas mãos menos volumosas e, com os dedos mais prolongados, os ossos do esqueleto são mais arredondados, mais bem dispostos ao movimento das articulações; maior elasticidade existe nos músculos e mais transparência existe na pele que cobre todo o corpo.
No seu olhar, ele reflete o primeiro raio de luz intelectual; é o olhar da criancinha, ao despertar a sua alma, ao primeiro despertar da sensação em seu espírito adormecido.
No seu caminhar, já menos lerdo e vacilante, adivinha-se facilmente a ação inicial da vontade, o princípio das manifestações espontâneas.
Procura a mulher, e não mais a abandona, como no primeiro dia do homem. Assiste-a no nascimento dos seus filhos, com quem reparte o calor e o alimento. O sentimento começa a despontar.
Move a língua, entorpecida e balbuciante, como a do pequeno párvulo. Sente novas necessidades – e ensaia os meios de exprimi-las, para satisfazê-las. Eis o princípio da linguagem: a necessidade.
Julga inferiores os demais animais e aproveita-se deles para saciar a fome, conforme o seu apetite.
Suspeita que nem tudo acaba onde termina o alcance da sua vista; que, por detrás de sua montanha, levanta-se outra, em uma extensão relativamente dilatada.
No seu olhar divisa-se mais surpresa e curiosidade do que estupidez. Foge dos objetos que encontra pela primeira vez: pouco a pouco perde o temor que lhe causa a novidade; evita, aceita – e, por fim, compraz-se em tomar nas mãos o que lhe causou receios. Já o seu rosto, os seus ademanes e as suas exclamações revelam a pueril alegria de que está cheio o seu coração.
É o soldado que acaba de alcançar grande triunfo sobre um invencível inimigo.
O medo é mais poderoso nele que todos os seus cálculos e sentimentos.
O rugido das feras, o estampido do trovão, o fulgor do relâmpago, o sinistro rumo que precede a tempestade, os freqüentes tremores de terra, pelas expansões interiores, a erupção dos vulcões, e não só isto, tudo o que é novo, tudo o que é desconhecido, gela-o de espanto, transtorna-o e aniquila-o.
Esquece a companheira, esquece os filhos, e crê que vai morrer.
Porque ele sabe que tem de morrer e o temor da morte sobreleva todos os seus temores. Ele viu, com medo, cadáveres de outros homens e julga inevitável a morte.
Já não procura a sombra e a solidão, como no primeiro dia; foge das trevas, porque tem medo; e foge da solidão; porque se reconhece débil e impotente. A mulher e os filhos são sua companhia habitual.
Admira, com infantil entusiasmo, a saída do príncipe dos astros e renascem as suas recordações e suas esperanças, pintando-se, no seu rosto, o desânimo e a angústia quando vê o Sol perder-se no horizonte. Volverás? pergunta-se entristecido.
E o Sol reaparece, porque a satisfação de todos os desejos legítimos da felicidade está prevista na eterna lei que imprime seu movimento aos mundos e dirige a evolução dos seres.
E o homem cai agradecido, de joelhos, ao contemplar o renascimento do Sol e, na sua grosseria e incipiente linguagem, exclama: Graças, meu amigo protetor – meu Deus! Tu vens consolar-me. A ti devo minha felicidade e a minha alegria. Eu te adoro!....
O beneficio foi o primeiro deus da humanidade, personificado no Sol, porque o Sol era o maior dos benefícios que a materializada inteligência do homem podia conceber.
Não tomeis por vitupério essa adoração primitiva; ela é o ponto de partida da religião natural; completada pelo Evangelho de Jesus e pelas sucessivas instruções sobre os pontos obscuros do Evangelho.
Ela é, ainda, a raiz da moralidade das ações humanas – a primeira manifestação de agradecimento da criatura ao poder superior desconhecido.
V
Adiante! ... Adiante! ....
O homem emergiu de sua inofensiva infância. Os seus apetites, os seus instintos, as suas paixões dominam a vontade, que precisa de leme. O homem é uma barquinha agitada pelo vendaval.
Vê a mulher, e sente de chofre o fogo da luxúria. Ai da mulher, se se atreve a opor-se, a resistir aos seus carnais desejos!
Quebra-la-á entre as mãos, com a facilidade, com que quebra um frágil caniço a mão contraída do adolescente contrariado.
Os apetites da carne preponderam e exercem no homem violenta influência.
Estamos no reinado da carne.
O corpo humano adquiriu toda a sua força e robustez. Não vos falo de sua beleza.
Eu conheço, porventura, o limite da beleza dos organismos humanos? Sei mesmo, se existe ou não esse limite?
A carne impera; os seus estímulos são tão poderosos no homem, que obscurecem completamente a sua razão, torcem o seu juízo e perverte-lhe a consciência.
Não importa: adiante! adiante! ....
O homem julga lícito tudo servir a sua concupiscência. Ainda não pensou em classificar os seus atos, como lícitos ou ilícitos, senão como agradáveis ou desagradáveis.
Sente a força, que em si brota, e corre a satisfazê-la, sem cuidar de meios brandos ou violentos. Se outros homens têm em seu poder o manjar que ao seu estomago apetece, corre a arrebatá-lo; se para arrebatá-lo é mister matar, mata. Fustigado pela fome, mata do mesmo modo um seu semelhante e devora-o, mesmo que este seja um filho ou mesmo a sua própria companheira.
Horrorizai-vos... mas não condeneis. Só compaixão deve inspirar-vos os primeiros extravios da nascente humanidade. Ai! vós não sabeis sobre quem cairia a vossa condenação.
Sente o aguilhão da luxúria, e tudo o impele a satisfazer o seu insaciável e vulcânico apetite.
As contrariedades excitam a sua ira e movem-no à vingança. Irado, perde os traços humanos do seu semblante e não compreende outra vingança que não seja a morte.
Os seus deuses são o raio e o furacão, símbolos, para ele, os mais expressivos da força e do poder.
O gérmem de todos os maus instintos que tem nascimento da carne, a semente de todos os sentimentos malévolos que tem a sua raiz na consciência; desenvolvem-se aceleradamente e dominam no coração do homem.
O bem moral é desconhecido, o mal é o soberano da Terra, e tem sujeitado ao seu domínio as manifestações da vontade humana.
Não digo da liberdade humana, porque, nessa fase da humanidade, a vontade não é a liberdade; é pouco mais que um impulso mecânico e inconsciente; é uma pequena fagulha luminosa; amortecida pelo frio da insensibilidade afetiva e pelo impulso destruidor das exigências da carne.
Os diabos espalham-se e pululam por toda a extensão da Terra – e insinuam-se enganosamente nas inexperientes criaturas. Incitam, com sedutores afagos, a fornicação – a intemperança – ao egoísmo – ao ódio – a violência – ao homicídio; triunfam sem resistência.
Isto devia ser, e foi, o reinado da carne; - deveria preceder, em virtude da eterna lei, ao reinado do espírito – assim como o reinado do diabo ao de Deus, sobre a Terra.
Não vos escandalizem com estas palavras. O mal absoluto não existe. Tudo o que está no tempo é relativo. O mal de hoje é o bem de ontem – e o bem presente será o mal de amanhã.
Nada há absolutamente perfeito senão o absoluto – e nada há absoluto – senão Deus.
Tudo o que existe fora de Deus, vem de Deus, porem não é Deus – e existe de toda a eternidade, sem ser Deus, porque Deus é o princípio de todas as coisas, e existe de toda a eternidade.
No principio era Deus e era o Verbo – e o Verbo em Deus era Deus, porque era o próprio Deus – e o Verbo como emanação de Deus – e não era Deus fora de Deus.
Porque todas as coisas do céu e da Terra são efeitos da palavra de Deus.
Nada há absolutamente perfeito senão Deus e o Verbo em Deus, que é a lei em Deus.
O perfeito não pode ser jamais principio do imperfeito; e eis porque a imperfeição absoluta, o mal absoluto, não é uma realidade.
A lei é perfeita, porque é o Verbo em Deus – as criaturas não são perfeitas, porque são o Verbo fora de Deus.
Porém, o Verbo fora de Deus, como o que vem de Deus, caminha para a perfeição, que é o seu princípio e o seu fim.
A imperfeição das criaturas, as suas misérias, as suas fraquezas, os seus extravios, os seus erros, não são mais que transições ou fases progressivas de sua perfectibilidade infinita – eis porque eu dizia e repetia: Adiante!... Adiante!...
VI
Somos chegados ao nascimento das sociedades.
Donde veio a sociedade?
Não o adivinhais?
Meu espírito contempla, absorto, o encadeamento e a sucessão das maravilhosas fases da geração e do movimento do Verbo.
No princípio era Deus, e em Deus o Verbo, e Pensamento de Deus.
E o Verbo em Deus gerou hoje, no princípio, a Palavra, que é Verbo fora de Deus.
E o Verbo, a palavra, gerou no princípio a matéria cósmica e o movimento; e o Verbo em
Deus gerou hoje, no principio, a lei fora de Deus.
E a lei, atuando desde o principio sobre a matéria cósmica e o movimento, gerou a sucessão eterna das coisas e dos tempos.
E a lei gerou a condensação e a separação da matéria cósmica.
E a condensação gerou o movimento circular – e a separação gerou a translação.
E a rotação e a translação geraram o resfriamento e as formas das massas condensadas e separadas da matéria cósmica.
E a lei gerou, pelo resfriamento das grandes massas de matéria cósmica condensada, os globos vaporosos – e os vapores geraram os líquidos, e os líquidos se transformaram em sólidos.
E a lei, atuando sobre os sólidos e os líquidos, gerou os primeiros organismos.
E vieram os vegetais.
Eu não sei qual a geração dos animais aquáticos, que certamente vieram após a vegetação aquática.
Eu não sei qual a geração dos animais terrestres e das aves; sei, porém, que vieram depois da vegetação terrestre.
Eu não sei qual o principio da geração do homem; porém, sei que ele veio depois da sucessão dos animais terrestres.
Meu espírito estava deslumbrado e cego.
E a lei, na sua atividade eterna, gerou hoje, no princípio, o ser da matéria cósmica, e gerou, no seio da substância, o princípio vivificante.
E o princípio vivificante gerou o desenvolvimento expansivo e a transformação progressiva de todas as substâncias, procedentes da substância única.
E a lei, agindo sobre o principio vivificante, gerou, para o vegetal - a tendência, para o animal – a sensação, o impulso e o instinto, para o homem – o sentimento, a vontade e a luz.
Já conheceis o mistério; hoje não podeis penetrá-lo nem eu tampouco.
Estudemos em Deus, neste e noutro século, ativemos o estudo e oremos pelo estudo e em verdade; porque Deus vê o nosso estudo, e os seus ouvidos ouvem, e os seus olhos estão postos nos nossos bons desejos.
Porque está escrito; que nada permanecerá eternamente oculto.
E o princípio vital; predominante, gerou nos vegetais, nos animais e no homem o desenvolvimento e o predomínio dos órgãos.
E o predomínio dos órgãos, no homem, gerou primeiro a estupidez, que é o sonho da luz – e a inércia, que é o sonho da vontade e do sentimento.
E a primeira chispa luminosa gerou o primeiro movimento da vontade incipiente.
E o predomínio orgânico, no homem, gerou a força muscular.
E a vontade, subjugada pela carne, gerou o abuso da força.
Dos estímulos da carne nasceu o amor.
Do abuso da força nasceu o ódio.
E a luz, agindo com maior intensidade sobre o amor e sobre o dia, gerou as sociedades primitivas.
VII
O homem mora em companhia das suas mulheres e dos seus filhos, e a fornicação no meio deles.
E a fornicação é a fogueira que dá o sinal e atrai os ladrões.
E os filhos do fogo se ajustam aos filhos do fogo – e a fornicação os faz fortes, pela união contra os fortes.
No meio de todos existe a força e a iniqüidade, porque a força está com o poder, e a luz, no homem, já lhe ensinou o poder da força.
Um homem, dois homens, dez homens; uma mulher, duas mulheres, dez mulheres, uma família. Uma família, duas famílias, dez famílias, uma sociedade. Primeiro é o homem.
A família existe pela carne; a sociedade existe pela força.
Moram as famílias à vista de todos, protegem-se, criam rebanhos nos pastos próximos, levantam tendas sobre troncos, e depois caminham pela terra; primeiro é o homem.
Entre as tribos vê-se a guerra.
A guerra pela fornicação, pela violência, por causa dos rebanhos, dos pastos, das peles, por causa da sombra das tendas.
O primeiro direito é a força, porque o primeiro rei é a carne.
O homem mais forte é senhor da tribo: a tribo mais poderosa é o lobo das outras.
Porém, duas tribos, três tribos, se concertam e se opõem à vontade do lobo; e, o que devorava, é devorado.
Que vale a vida de um homem? Que vale a de cem homens?
Morre um filho? Um movimento da carne é um choro e uma lágrima. Morre um homem? É um grão de areia nas entranhas do mar.
Todos os gozos são a gula, a fornicação e a vingança; todas as dores são a fome, os males do corpo, os sofrimentos e as violências do ódio.
As tribos errantes, como o furacão, marcham para diante, e, como o gafanhoto, assolam a terra onde pousam seus enxames.
As pedras e os ramos despencados das árvores são os seus instrumentos de destruição e de morte; o seu grito de guerra é um alarido feroz.
Mas, o abuso da força e da fornicação era necessário: estava na lei da depuração e da perfectibilidade.
Em virtude dessa lei se purificam o ouro e o cristal, o espírito e o corpo; porque ambos vem de um mesmo princípio, e marcham para o mesmo fim: para Deus, que é o princípio e fim dos seres.
A preponderância, porém, do corpo, devia preceder; pois que, da vitória do Espírito sobre a carne, depende a depuração e desenvolvimento indefinidamente sucessivo da criatura racional.
Não acrediteis, entretanto, que a desesperação e a elevação do corpo sejam o predomínio da carne; precisamente, o que este predomínio revela é a inferioridade do corpo.
O aperfeiçoamento do corpo segue paralelo ao do Espírito; porque ambos obedecem a mesma lei – e o Espírito edifica o seu teto conforme as suas necessidades e na altura das suas aspirações.
À medida que o Espírito se emancipa das suas impurezas, o corpo se desprende também das suas, pela comunicação que existe entre o Espírito e o corpo, e em virtude da influência que o primeiro exerce sobre o segundo.
O homem tem dois corpos. Pelo primeiro, que o toma da substância etérea fluídica, comunica o Espírito sua atividade e perfeição ao segundo.
O primeiro é tanto mais etéreo e celestial, quanto maior é a elevação do espírito do segundo, e menos carnal, conforme a purificação do primeiro.
O limite superior do corpo carnal é o corpo espiritual; o limite do corpo espiritual é o Espírito – e o limite do Espírito é Deus.
Não o duvideis, embora não o compreendais. O corpo terreno se purifica gradualmente e se eleva até o corpo espiritual – o corpo espiritual até ao Espírito - e o Espírito até a Deus.
Esta é a lei. Não a conheceis hoje; esperai, que a conhecereis amanhã.
VIII
Donde vieram esses homens novos no meio dos homens? A Terra não lhes deu nascimento, porque eles nasceram antes dela ser fecunda.
A Humanidade não se transforma num dia, mas no decurso de séculos e séculos.
No meio dos homens antigos da Terra, descubro homens novos, meninos, mulheres e varões robustos; donde vieram esses homens que nasceram antes da fecundidade da Terra?
Em cima e ao redor da Terra, rodopiam os céus e os infernos com sementes de gerações e de luz.
O vento sopra para onde o impulsiona a mão que criou a sua força, e o Espírito vai para onde o chama o cumprimento da lei.
Os homens novos que descubro entre os homens antigos da Terra, e que nasceram antes de esta ser fecundada, vêm a ela em cumprimento de uma lei e de uma sentença.
Eles vêm de cima, pois vêm envoltos em luz, e a sua luz é um farol para os que moravam nas trevas da Terra.
Se, porém, seus olhos e suas frontes desprendem luz, nos semblantes eles trazem o estigma da maldição. É a reprovação das suas consciências.
São árvores de pomposa folhagem, mas privadas de frutos, arrancadas e lançadas fora do paraíso, onde a misericórdia as havia colocado, e donde as desterrou por algum tempo.
A sua cabeça é de ouro, as suas mãos de ferro e os seus pés de barro. Conheceram o bem, praticaram a violência e viveram para a carne.
Os que, entre eles, se aproveitaram da luz e praticaram a justiça, viram os ferros das suas mãos e o barro dos seus pés transformar-se em ouro, como o de suas cabeças, e ficaram residindo no paraíso até à sua elevação. Para os outros, a misericórdia foi justiça, e seu pecado acompanhou-os em maldição perpétua, até ao renascimento.
Eles tinham a luz, e desprezaram-na e, em vez dela, surgiram o orgulho e o desejo de oprimir os bons.
Moisés viu a sua luz e disse: São anjos decaídos; viu-os feito de barro e disse: São homens – Adão e Eva; e fê-los ser expulso do paraíso pela tentação dos anjos decaídos.
Vós perguntais: Como se pode retrogradar no caminho da felicidade e da perfeição.
Poderemos desse modo ir viver um dia na morada da ventura? Somos fracos, e o temor e o desânimo se apossam de nós.
Recuperai a paz; eu, João, vô-lo digo: descansai no seio da sabedoria e da misericórdia do Pai, como descansei a minha cabeça no regaço e no amor do Filho, Jesus Cristo.
Na perfeição nunca se retrocede; o Espírito é sempre atraído para o centro da perfeição, que é Deus. Os homens de Adão, ao virem para a Terra, não perderam um só átomo do aperfeiçoamento adquirido.
Eles tinham sido elevados ao paraíso pela misericórdia divina e não pelos seus merecimentos, porque as felicidades são também provas, assim como os sofrimentos e as misérias.
Muitos se saíram bem da prova e mostraram que era justiça o que tinha sido misericórdia; estes herdaram o paraíso até que aí fossem elevados, porque a felicidade da justiça se perpetua de tempos a tempos e de geração a geração.
Outros abusaram dos dons da misericórdia, e as suas obras clamaram justiça; e o peso dessas obras na balança da justiça fê-los descer à Terra, até ao renascimento.
Mas a misericórdia de Deus os segue sempre de século em século, de geração em geração.
A geração proscrita traz na fronte o selo da sentença, mas também tem o da promessa no coração.
Tinham pecado por sabedoria e orgulho, e o seu entendimento obscureceu-se.
Passarão os anos e os séculos, e o entendimento estará nas trevas e as trevas no entendimento.
Foi o entendimento quem pecou; as trevas são o seu castigo; não há outro.
A obscuridade foi a sentença do entendimento ensoberbado – a luz, a promessa da misericórdia que subsiste e subsistirá.
E essa luz deve iluminar a todos os homens que vêm ao mundo para cumprir uma sentença.
A uns como o sol nascente, a outros o sol meridional, a outros com o sol poente, prestando-lhes o seu calor até a manhã em que ele despontará mais luminoso.
É lá no Oriente que irrompem os primeiros albores do sol dos Espíritos, os crepúsculos do novo dia, a aurora da redenção. Bem aventurados os que não dormem e tem os olhos voltados para a nascente do Sol: Porque serão os primeiros a ver a luz e se regozijarão antes do dia, e o dia não os cegará.
Bem aventurados os que choram por causa das trevas e da condenação, e cujos corações não edificam moradas nem levantam tendas.
Porque serão peregrinos no cárcere, e renascerão para morar perpetuamente, de geração em geração, nos cimos onde não há trevas; porque recuperarão os dons da misericórdia na consumação.
Ai dos que dormem com o rosto voltado para o poente! Ai dos que olvidam e riem! Ai dos que estabelecem moradas e levantam tendas! Ai dos que se enraízam no pó!
Eles ficarão cegos antes de verem a luz - os seus olhos renascerão na obscuridade - e o seu dia não renascerá nem neste nem no século vindouro.
Eles serão considerados, não como peregrinos, mas como habitantes; é a sua justa sentença.
Serão novamente plantados no pó das suas raízes, até a hora do fruto, da justiça e da renovação.
Eu - João
IX
Quem poderá contar os dias da Terra? Somente Aquele que a tirou do caos, que a separou, que a arrancou do seio da geratriz.
Quem poderá, quem se atreverá a exprimir por um número determinado; os dias do homem?
Os dias da Terra são um; os do homem constam do ontem, hoje e amanhã.
Antes de ser a Terra, ela o era em seus elementos, juntamente com o homem, com o espírito do homem. Quando ela deixar de ser a Terra, será ainda a Terra em seus elementos – e ficará ainda o homem o espírito do homem.
Antes de existir o homem, existiam o espírito do homem e o homem – e, antes do homem e do espírito do homem, existia Deus –e em Deus, o homem e o espírito do homem. Depois do homem e do espírito do homem, vem o homem e o espírito do homem – e depois Deus – e em Deus, o homem e o espírito do homem até o seu complemento.
O poder e a glória de Deus se patenteiam no homem e no espírito do homem – e essa glória e esse poder existiram, existem e existirão sempre.
Desde o começo e antes dele, Deus já era, bem como a sua glória e o seu poder, no homem e no espírito do homem.
As sementes do homem e do espírito do homem estavam, desde o principio, nas mãos de Deus – e o homem, desde o principio, aos pés de Deus, e o espírito do homem estava ministrando aos olhos de Deus, como complemento do Verbo, engendrado com o pensamento em Deus.
Não há rei sem vassalos, nem Deus sem glória, nem Criador sem as obras do seu poder.
Deus sempre: por conseqüência, sempre o homem e o espírito do homem.
O homem e o espírito do homem, desde o princípio, estavam em Deus; os homens no curso do tempo vão continuando a obra de Deus e marchando eternamente para Deus, que é o ponto de mira da criação inteira.
Deus é Deus desde o principio, e com Deus existe sua lei; porque essa lei é o bem, a sabedoria, e a sabedoria é Deus.
A sabedoria, em sua atividade eterna, que no principio engendrou o homem e o espírito do homem, engendra-o hoje.
A sabedoria, limitando-se a um tempo circunscrito e desligando-se do que vem do princípio, é a negação da verdadeira sabedoria e de Deus.
Portanto, o homem e o espírito do homem existem desde o principio; o homem e o espírito do homem emanam da atividade eterna da sabedoria.
Desde o começo a Humanidade existiu, desde então os homens, no correr dos tempos, continuaram a obra eterna da sabedoria de Deus.
Quem é como Deus?
Se o homem vem desde o principio, não deixa de ter saído das mãos, da sabedoria de Deus.
O princípio humano desde o começo existiu em Deus, mas os homens sucedem-se no tempo.
Quem, senão Deus, poderá dizer: Eu sou desde o principio? Os homens todos; tem seu princípio na lei, na sabedoria de Deus. Desde o começo estiveram em Deus o homem, o espírito do homem e a sucessão dos homens, indo estes no correr do tempo cumprir a lei de sucessão estabelecida desde o princípio.
Em Deus não há sucessão, mas sim em tudo o que não é Ele; a sucessão é o selo da criatura, a linha misteriosa que o separa do Altíssimo.
O homem nasce com o primeiro pensamento, porque o primeiro pensamento é a primeira palavra do espírito do homem. E o primeiro pensamento, donde o homem tira o principio, é a revelação da continuação eternamente ativa da sabedoria de Deus.
Antes do primeiro pensamento o homem não existia; ele pensou, pela sabedoria de Deus, e foi criado, saindo do caos donde a sabedoria havia tirado desde o principio da sucessão das criaturas. O primeiro pensamento é o homem, ao mesmo tempo, que o principio de uma sucessão, sem termo de modificações e transfigurações. Ele sai da desordem, do caos, das trevas e caminha constantemente para um foco irradiante de inextinguível luz, ao redor do qual descreve círculos cada vez menores. As criaturas não são mais que diminutos satélites circulando ao redor do Sol da sabedoria, centro imutável do Universo infinito.
Quem é como Deus? Deus é o centro fixo e imutável da felicidade e da luz; d'Ele procede a vida, e os seus raios dão o ser, e geram, desde o principio, o movimento e a sucessão.
O homem caminha para Deus; mas o homem é uma sucessão e jamais alcançará a imutabilidade, só própria do Ser Supremo. Jamais alcançará a imutabilidade, mas dela irá eternamente aproximando-se.
A imutabilidade é a felicidade infinita que o homem possuirá.
A felicidade infinita é a sabedoria infinita, porque a soma de todos os gozos só cabe ao grau supremo de todos os conhecimentos.
Portanto, será sempre infinita a distância que separa o homem da felicidade absoluta, pois ele nunca chegará à sabedoria imutável.
O Verbo fora de Deus é a sucessão; e o homem é, desde o principio, o Verbo fora de Deus, a sucessão eterna, a mutabilidade sem término.
A felicidade é um oceano de luz sem horizontes, sem margens, eterno, imenso, insondável, infinito; o homem é criado dentro dessa imensidade como um ponto sombrio, imperceptível no infinito luminoso, destinado pela sabedoria e misericórdias divinas a banhar-se eternamente no oceano de felicidade que o rodeia. Como, porém, esse ponto imperceptível poderá percorrer todo esse oceano. . .se ele é infinito?
Deus, e só Deus, o abraça todo. Bendigamos, caros irmãos, a Deus com todo o nosso coração e todo o nosso entendimento; porque a sua mão nos fez e deu-nos o poder de aumentarmos cada dia a nossa perfeição e a nossa felicidade, pelos nossos merecimentos.
Mereçamos, caros irmãos, e a nossa felicidade irá aumentando.
Meu espírito paira na esfera de felicidade que vos falo, e de que não podeis formar juízo sob a capa que vos envolve; mas, se elevo os meus olhos, vejo que me separa de Deus o Infinito. . . o infinito.. .o infinito.
Eu vos rendo graças, meu Deus! . . pois que, achando-me mesmo a uma distância infinita de vós, encheis todos o meu ser.
Graças, meu Deus!
Eu – João
João está separado de Deus pelo Infinito; e eu estou separado de João por uma distância espantosa.
Ele é o condor de alvíssima plumagem e majestoso vôo que se eleva até à região do Sol e se banha num pélago de inextinguível luz, ao passo que eu; mísera ave noturna, ainda não pode subir acima da região das trevas.
O peso da minha inferioridade e das minhas misérias prende-me à Terra; mas eu elevo os meus olhos aos céus e espero em Deus.
Vi João descendo dentro de um círculo de luz, das celestes moradas cujos umbrais, só a virtude acrisolada pode transpor.
Vi-o rasgar o espaço com a velocidade do pensamento divino e baixar à Terra, inundando tudo com a sua luz.
Vi-o incendido no amor de Deus e na caridade, radiante e formosíssimo como um reflexo do Senhor nas alturas.
Vi-o aproximar-se de mim, envolvendo-me na sua amorosa se regeneradora vista, e depois pousou sobre vós com inefável ternura, semelhante a um irmão mais velho que olha com inefável carinho e paternal solicitude seus irmãozinhos, órfãos da benfeitora tutela do seu pai, e das doces carícias de sua mãe.
Vi-o apoderar-se da vossa pena para dizer-vos o que eu não podia dizer, porque o ignorava; para explicar-vos o que eu não podia explicar, porque não o compreendia; para revelar-vos o que só pode revelar os Espíritos que recebem diretamente os esplendores do pensamento de Deus.
Oh! eu me achava junto de vós, e nem me lembrava de vós. Perdoai-me, porque naquele venturoso instante a minha alma estava toda absorta na contemplação do pensamento de João. Eu me sentia arrebatado pela corrente de uma felicidade desconhecida, pelo caudaloso rio da sabedoria celestial que se estendia ante meus olhos.
Como podia lembrar-me de vós, se houve momentos em que nem me lembrava do próprio João! Enlevado nos divinos conceitos da mente do Discípulo, arrebatado na sublimidade da sua teologia, eu não me lembrava senão de Deus, não podia admirar senão a bondade e a sabedoria de Deus.
Vi João elevar-se de novo, depois de vos ter falado e transpor as nuvens de ouro que servem de pavimento à morada dos justos.
Vi-o finalmente, antes de desaparecer das minhas vistas, dizer-me e repetir-me com indescritível emoção:
"Caro irmão, estuda, ama e espera. A minha sabedoria é uma gota de orvalho, o meu amor uma minúscula faísca, a minha felicidade uma sombra. Estuda, ama e espera, e o teu entendimento alcançará luzes que o meu ainda não vislumbrou, e o amor transformará o teu coração em uma chama inextinguível, e a tua ventura irá além dos teus desejos. Estuda, irmão, ama e confia em Deus".
E caí abismado em funda meditação. Considerava a minha pequenez e orava.
Orava, irmãos, orava e sentia-me regenerado; orava e sentia germinar no meu coração as esperanças de João. Orava, meus irmãos, e orarei eternamente a Deus, porque, sem o seu paternal auxilio, jamais poderei alcançar o amor e a sabedoria de João.
Oremos todos, meus irmãos, ajudai-me a orar:
Deus eterno, Pai misericordioso, estende tuas mãos aos meus irmãos que choram nas misérias da carne, e não olvides os que choram nas trevas do espírito! . . .
Graças, Deus meu!
XI
Os homens novos, que vieram à Terra para cumprir uma sentença, olham para os homens antigos da Terra com orgulhoso desprezo, considerando-os indignos do seu convívio, e resolvem nos seus conselhos dominá-los e abatê-los.
No Paraíso, eles abusaram da mansidão e da simplicidade de coração dos seus irmãos; na Terra abusarão da sua ignorância.
Ontem se julgaram superiores, e o seu entendimento foi confundido e o seu orgulho foi humilhado pela justiça; hoje, julgam-se de novo superiores, e serão confundidos no seu entendimento e humilhados no seu orgulho.
Já o sabeis até quando.
Lavram a pedra, a madeira e o ferro, porque o seu orgulho precisa de castelos; a sua sensualidade, retiros de prazeres; e a perversidade dos seus sentimentos, instrumentos de opressão e de morte.
Vieram à Terra como peregrinos, e ficarão residindo nela, porque construíram aí moradas para o seu coração, e palácios para o seu orgulho.
Irão e voltarão; porque, ao partir, as suas almas não abandonam as chaves das moradas que edificaram na Terra.
Vão e voltam, e tecem tecidos de vaidade para os seus corpos, e túnicas de corrupção para as suas almas.
Andam rastejando sobre as harmonias da criação, não para buscar nelas Deus e a virtude, mas para acomodá-las aos gozos da matéria.
Sentem nos seus corações um desejo celestial; mas o seu entendimento ofuscado desvia as suas consciências e só lhes fala aos sentidos.
O seu Deus é a carne, porque não pressentem outros prazeres além dos grosseiros da carne.
Levantam nas suas almas altares a todas as paixões que a corrompem, mas não se lembram do Deus de Justiça e Misericórdia.
Uma intuição luminosa, espécie de pressentimento, lhes fala de um Ser supremo e da responsabilidade humana; porém, o seu orgulho tem tão fundas raízes, que eles protestam contra a existência d'Aquele que com um sopro poderia aniquilá-los.
Eles referem tudo ao presente; pelo que, a sua atividade e os seus esforços não se encaminham senão para a satisfação dos seus instintos e das suas paixões, esperando depois da morte o silêncio, a decomposição. . . e o nada.
Fogem de Deus; mas o peso das suas misérias e as calamidades que atraem sobre eles o furor desenfreado do seu orgulho; fazem-no sentir Deus pelo terror.
Odeiam-no, temem-no, oferecem-lhe sacrifícios de sangue para acalmar a sua ira e afastar a sua vingança, porque acreditam que a Divindade é miserável e vingativa como eles.
Se alguns falam de Deus, é sempre do Deus que se faz ouvir na voz da tempestade e que no raio manifesta o seu poder.
Não temem outros castigos além das enfermidades, a inundação, o incêndio, a espada e o extermínio, nem esperam outros bens que não sejam as comodidades e os gozos dos sentidos durante os longos anos da sua vida terrena.
De tempos a tempos, de geração em geração, aparecem no seio da Humanidade, como archotes nos meio das trevas, como modelos para a imitação, homens virtuosos e humildes que lamentam os erros do mundo. São meteoros que Deus envia da região da luz para despertar os que dormem no lodo.
Outros vêm armados da palavra e do espírito de Deus, e apregoam o seu nome e o seu poder. Arrojam palavras de fogo, de destruição e de morte, as únicas capazes de dominar as rebeldias humanas. Trazem na mão direita a promessa, e na esquerda uma espada flamejante. São os Gênios de que precisa a Humanidade no apogeu da concupiscência.
A raça dos homens novos propaga-se com assombrosa rapidez: invade a Terra e dela se assenhoreia.
Sujeita ao seu domínio, as raças primitivas, depois de destruírem as suas tendas pelo ferro e pelo fogo.
Contudo, na servidão e nesse contato com os seus dominadores, elas aprendem os primeiros rudimentos da virtude, e adquirem pela cultura do entendimento os primeiros elementos do poder.
Haverá recém-vindos que serão dos primeiros a chegar, e muitos que vieram primeiro, cairão sete vezes no caminho e chegarão, por último, ao declinar da tarde.
A Terra sofre grandes perturbações; o mundo físico e mundo moral caminham paralelos no cumprimento da lei.
À invasão das paixões, no coração do homem, corresponde na Terra à invasão das águas. O homem vomita do seu seio o fogo nelas ateado pela lascívia e pela iniqüidade: a Terra arroja das suas entranhas, pelos seus formidáveis vulcões, imensos turbilhões de fumo e matérias derretidas que assolam fertilíssimos países.
Nessas comoções terrenas e morais, os homens desaparecem em legiões inumeráveis, e vão ao juízo; uns descem para sofrer provas a fim de se purificarem; outros para repararem faltas; depois do que todos voltam de novo.
Estes morrem debaixo das águas, aqueles sob as ruínas, outros no fogo, e outros à espada.
As calamidades caem sem interrupções sobre os povos.
Hoje, é este que sente o peso da mão do Senhor; amanhã, é aquele.
E tudo é misericórdia, nada mais que misericórdia.
Porque, os homens esquecem na carne os seus propósitos – e a misericórdia concedem-lhes períodos de reflexão, nos círculos espirituais, para recordá-los, renová-los e fortalecê-los.
XII
Um século - outro século - e outro século.
E os servos se tornam senhores, e os senhores se tornam servos.
Uma estrela nasce para os homens da raça primitiva da Terra, sob cuja luz e calor terá começo a formação de um grande povo.
Essa estrela é Abraão.
Ele é o fundamento do povo hebreu, o primeiro caudilho da emancipação da raça primitiva, e a primeira nuvem no horizonte da raça dominadora.
Porque os hebreus são os homens antigos da Terra, e os seus caudilhos são os missionários
para levantar o oprimido e abater o opressor.
Ao redor de Abraão, de Isaac, de Jacob e de José se agrupam todos os humilhados, todos os escravos, todos os que gemem no opróbrio, pelo orgulho e pela iniqüidade dos estrangeiros que vieram do Paraíso.
E Moisés e Josué livram-nos do opróbrio e da servidão – e caem depois sobre Canaã, nação guerreira e orgulhosa, e sujeitam-na e encadeiam-na.
Antes, porém, o povo hebreu passa quarenta anos de provações, e, nessas provações, prevarica uma vez, mais outra, e cai nas abominações da idolatria e da incontinência.
Triunfará de Canaã e sujeita-la-á; mais tarde voltará à servidão.
Hoje a expiação para Canaã; amanhã para o povo grosseiro, indigno e prevaricador.
Recebe a lei escrita, a fim de que pelos olhos ela lhe penetre no entendimento e no coração.
A nova lei é o primeiro anúncio divino do amor e da caridade, como meios de depuração e de progresso.
Mas – o povo hebreu vê e ouve a lei, e não aparta os seus da leviandade, nem os seus pés da idolatria.
Sofre as justas conseqüências dos seus pecados, e chora aos pés de Deus; recupera a paz, e se precipita de novo nas abominações dos ídolos.
Eis a Humanidade terrena primitiva: compadecemo-nos dela! . . .
As suas idéias a respeito da Divindade nasceram no meio do terror, na presença de grandes cataclismos. Respeita a Deus, como o escravo que vê o seu senhor com o látego na mão, em atitude iracunda, mas não o respeita na sua alma; treme, mas no seu temor só sente o desejo de emancipar-se.
Como o menino manhoso que se aquieta com o castigo e se subleva logo depois, o povo hebreu é a segunda infância da humanidade terrena.
O Pai é bondoso, mas é também justo e sapientíssimo, e quer que seus filhos se façam dignos da felicidade, pelo mérito.
As abominações do povo de Abraão clamam justiça do céu – e a justiça se aproxima.
Vêm os juízes e vêm depois os Reis – e as ameaças da justiça têm o seu cabal cumprimento.
As raças primitivas, sob o jugo das raças degeneradas, aprendem as primeiras noções do dever. Depois, as primeiras são o instrumento providencial para o castigo das segundas, e estas são os instrumentos para o castigo das primeiras.
Umas serão reciprocamente o corretivo das outras, até ao seu equilíbrio e confusão em uma só família, em cumprimento da lei da fraternidade universal.
Quando chegar esse dia venturoso, as nuvens não flutuarão mais sobre a Terra, senão para fecundá-la.
Antes, porém, se sucederão muitas gerações; porque a Humanidade segue o seu caminho, passo a passo.
Alguns Espíritos ativos transpõem as distâncias com insólita rapidez, mas a generalidade faz o seu progresso, pausada e gradualmente.
Apenas começa a germinar entre os homens de uma e outra raça a idéia da imortalidade espiritual. Ela é demasiado grande para que possa caber no estreito cérebro dos homens primitivos, e excessivamente consoladora para que sejam dignos de concebê-la os homens degenerados.
Uns e outros reputam a morte como o termo do princípio de vida que sentem, e cuja natureza desconhecem.
Certas inteligências privilegiadas entrevêem alguns resplendores, e, com o seu auxílio, adivinham alguma coisa sobre o destino das almas, porém, guardam o segredo da sua fé, porque sabem que os tempos ainda não são chegados.
Misteriosamente, elas se reúnem na obscuridade e falam em voz baixa das suas crenças e esperanças, sem deixá-las transluzir senão aos que julgam capazes de compreendê-las e sentí-las.
Escrevem livros divinamente inspirados, para fortalecerem, dirigirem as massas humanas e prepararem o advento do Espírito.
Os homens da matéria esperam, do cumprimento das promessas contidas nesses livros, anos de saúde e abundância de bens terrenos; e os que crêem em segredo na imortalidade da sua consciência aplicam à vida espiritual essas promessas de penas e recompensas.
Da ressurreição da carne ninguém diz uma palavra, nem o pai ao filho nem o filho ao pai. É o segredo dos segredos e o mistério dos mistérios.
Depois, alguns pensadores atrevidos, aos quais o mundo dá o nome de filósofos, erguem uma ponta do véu que esconde o misterioso segredo da morte.
Falam da alma humana e da sua natureza, mas essa natureza é ainda hoje desconhecida para os homens e para os Espíritos que não vêem o pensamento de Deus.
Dizem a primeira palavra sobre a ressurreição da carne, palavra essa originada em inspiração superior, porém, obscurecida por conceitos errôneos, nascidos da miséria do entendimento humano.
De todos os modos a semente caiu sobre a Terra; o grão de mostarda germinará e se converterá em árvore corpulenta, sob cuja benéfica sombra se acolherá a Humanidade inteira.
Temos uma alma imortal.
Estas palavras correm de boca em boca e o seu eco penetra nos corações e se estende como a influência da pedra lançada sobre as águas de um tanque.
Mas, assim como o ruído e o movimento das águas assustam e põem em confusão os peixes, a existência da alma imortal é no começo a causa de temores e confusão entre os povos.
Levantam-se seitas disputando o domínio das almas, como as castas disputaram o domínio dos corpos.
E chegam as guerras religiosas; porque, ainda está longe a hora em que a caridade destruirá a intolerância, em que a Humanidade reconheça que o amor é a melhor das religiões, e a única que pode conduzir à felicidade celeste.
E vêm a perturbação moral e o extravio do sentimento, pelo fanatismo religioso; e as sociedades e a consciência representam a imagem da confusão e do delírio.
Os homens das raças degeneradas levantam altares às suas paixões, porque os seus deuses são apenas personificações da sua concupiscência, do sensualismo que lhes corrói as entranhas.
Os da raça primitiva edificam sob o cetro dos seus Reis um só templo e um só altar; monumento alegórico da adoração do porvir; porque chegarão os dias em que o templo do
Altíssimo será o Universo, e o seu altar o coração da Humanidade inteira.
Os templos de barro ficarão reduzidos a escombros, por ocasião do advento do reinado do espírito profetizado por Jesus.
Os que contribuíram para levantá-los, voltarão para destruí-los com o sopro da sua palavra.
Tal se cumprirá quando a lei do Amor imperar em toda a redondeza da Terra; quando o gênio do bem, que é o sentimento da caridade, tiver penetrado e achar-se firmado no coração dos homens.
XIII
Quem preparará o advento do espírito? Quem derrubará os altares dos ídolos?
Quem derruirá o grande templo que, simbolizando a religião do porvir, revela também a adoração materializada da raça primitiva, para edificar o templo moral do sentimento?
Quem fundirá em uma só todas as raças e todas as famílias da Terra? Quem impelirá para frente os homens primitivos, e abrirá as portas da reabilitação dos homens degenerados?
Quem fará a luz na densíssima obscuridade em que estão submersas as inteligências humanas?
Quem indicará o caminho, com a palavra e com os exemplos?
Quem arrancará dos corações o temor, para derramar neles a semente do amor? Quem dissipará todas as dúvidas e fará renascer esperanças mais consoladoras?
Irmãos, retiro-me; voltarei para despedir-me de vós, quando me ordenar àquele que, com mais unção e sabedoria que eu, vem responder às perguntas ou às questões que acabo de formular.
XIV
Nos conselhos do Altíssimo pronuncia-se a sublime palavra da redenção; porque Deus fixou seus olhos nos homens, e, em sua justiça, compadeceu-se deles.
A confusão e as misérias humanas contristaram o seu coração amantíssimo. A Humanidade tem fome. A Humanidade precisa de luz, porque se afoga nas trevas.
Um Espírito, puríssimo sobre todos, ouvindo a palavra do Senhor, desce dos seus conselhos, em cumprimento dessa palavra, para que também os homens a ouçam e vejam.
O que vem do Alto está acima de todos, e pronuncia a palavra de Deus, porque vem dos conselhos de Deus.
Ele está acima de todos, porque só ele ouviu a palavra. Ele é a luz, porque vem dos círculos que resplandecem com os raios da sabedoria divina.
Essa luz dissipará as trevas do mundo e as trevas verão a luz e não a compreenderão, até que soe a hora.
Ele é o caminho, porque por ele os homens alcançarão a perfeição e seguirão para Deus.
Ele é a virtude, porque é a expressão da lei.
Tendo Maria por mãe e José por pai, ele nasce na humildade, porque vem para destruir o fanatismo do orgulho, e para que os pobres filhos do povo sofram com resignação e esperem no amor do Pai.
Ele é a luz e dá testemunho da luz, para que os homens vejam a luz e nela creiam. Ele dá testemunho de Deus, porque a luz procede de Deus, e dá testemunho da luz.
Ninguém ainda viu Deus, mas, quem vê a luz, vê Deus.
Nem o Filho viu o Pai, mas ele, que primeiro viu a luz, sabe o que é o Pai.
O Filho está no Pai, porque está no seio da luz; o Pai está no Filho, porque neste está a sua luz, que é o sopro da onipotência do Pai.
O Filho nada pode sem o Pai, e tudo pode com Ele, porque todo o poder vem de Deus.
O Filho é um com o Pai, porque as palavras do Filho são o pensamento do Pai, e as obras do Filho são a vontade do Pai.
A essência do Pai é a luz, a natureza espiritual do Filho é a luz emanada da substância do Pai.
O filho é superior a todos, porque ouviu a palavra e cumpre a vontade do Pai.
Ninguém foi, nem será igual ao Filho, porque ele foi sempre o cumprimento da lei, sem nunca infringi-la.
Portanto, o Filho é o caminho, a verdade e a vida, porque é o cumprimento da lei.
Mas, o Pai é Deus; e, o Filho, que está acima de todos, caminha adiante de todos e é a luz de todos, ele está abaixo do Pai, e só fala e obra pelo Pai.
O Filho expõe a luz e a verdade – o Pai é a luz e a verdade. O Filho procede do Pai, e o Pai não procede senão de si mesmo. O Filho é o Filho – e o Pai é o Pai.
Só Ele não procede de outro, e nunca foi engendrado; só Ele é por si mesmo o Pai.
Eu – João
XV
"O Filho desce do céu para fazer - não a sua vontade, mas a vontade d'Aquele que o enviou".
A vontade do Filho é o cumprimento da lei e, fazendo a vontade do Pai, ele faz a sua própria vontade.
A vontade do Pai é que todos os homens vejam a luz e por ela se salvem. A vontade do Pai é a lei, e o cumprimento dela é infalível.
O Pai é a lei, e o Filho é o cumprimento da lei; por isso, o Filho é o caminho para chegar-se ao Pai.
Os raios do Sol revelam a existência do Sol, e o Filho, a existência do Pai; porque o Pai é o centro da luz eterna, e o Filho, puríssima centelha da divina luz.
Os crepúsculos precedem ao nascimento do Sol; ao Espírito que é a luz, precede outro Espírito, que é o crepúsculo da luz.
João Batista é o crepúsculo da luz; o maior dos profetas precede ao maior dos enviados.
Jamais nasceu da mulher um profeta maior que João; também nenhum foi mais amado do Pai, que Jesus, o Cristo.
João batiza os homens na água e Jesus no Espírito - e o batismo de Jesus é a vida do Espírito, porque seu batismo é a palavra – e as palavras de Jesus são Espírito e vida.
Por isso, o que estuda as suas palavras em Espírito, verá a salvação e receberá a vida eterna.
XVI
Falo à Humanidade.
Se alguém pronunciar a palavra impossível! direi – insensato!... Desconheces absolutamente as causas; vês e não sabes porque vês; ouves e não sabes porque ouves; e pretendes marcar limites às causas?
A inteligência do homem é um efeito, e a sua ação não pode elevar-se acima dos efeitos.
Deus é a única causa de tudo.
Os homens e os Espíritos falam de Deus, da causa de tudo; mas, quem dentre eles já o viu?
Qual deles conhece a causa de tudo?
Nunca digais: - impossível!
Essa palavra exprime a ignorância, o orgulho da ignorância.
Se alguém disser; não é crível que João nos possa transmitir a palavra de luz, senão por intermédio de criaturas perfeitíssimas, perguntareis: quem são os que nos trazem a palavra de João, que é a palavra de luz?
E, quem sois vós que julgais?
Está escrito que o que julga, em seu próprio juízo fica julgado.
Já vistes o coração do nosso irmão? Nem mesmo o coração que está dentro da vossa alma, não viu ainda, e quereis penetrar na alma do vosso irmão?
Lembrai-vos do publicano, e não vos esqueçais do fariseu. O que diz: "Quem é este?" – patenteia um julgamento do seu coração, e no seu julgamento está o seu galardão.
Não digais, portanto, a respeito do que eu afirmo: impossível, incrível, se não quiseres chamar sobre vós o juízo do orgulho.
Recebei as obras de Deus; e estudai-as sem procurar-lhes as causas, porque, no estudo das obras de Deus, achareis a sabedoria.
A lei está em Deus e nesse permanecerá eternamente.
Amo os homens; falo à Humanidade. Minhas palavras serão a semente da parábola, e os tempos se aproximam.
Eu – João
XVII
"Ouvi a palavra, e receba a sua luz".
Ouvi a palavra de Jesus, o Cristo;
Bem-aventurados os pobres de espírito;
Bem-aventurados os mansos;
Bem-aventurados os que choram;
Bem-aventurados os que padecem fome e sede de justiça;
Bem-aventurados os misericordiosos;
Bem-aventurados os pacíficos;
Bem-aventurados os limpos de coração;
Bem-aventurados os que padecem perseguições por amor da justiça de suas obras;
Porque o nome deles está escrito no grande livro da vida, e o julgamento está no seu próprio coração e nas suas próprias mãos.
Deus é a fonte da vida – e vos recebeste o dom da vida, principio da felicidade imortal.
Se existis, é por Deus que existis; se sentis, é por Deus que sentis; se quereis, é por Deus que quereis; se amais é por Deus que amais.
Amais a Deus acima de toda a criação; porque, se Deus não existisse, a criação não existiria, nem existiríeis na criação.
A Deus, porém, deveis amar em espírito; porque Deus é o Espírito e a sua lei é a verdade; ele quer que os que o amam, o amem em espírito e em verdade.
O nome de Deus deve estar no lugar mais sagrado da vossa alma, porque sobre vós está Deus, como sobre o Sol que vos alumia, como sobre a lei do Universo.
Deus é o vosso Pai; nas vossas necessidades chamai pelo vosso Pai; e, vosso Pai, que conhece as vossas necessidades, responderá ao vosso apelo.
Ele responderá sempre que o chamardes do âmago de vossas almas.
Se alguém vos disser que Deus só ouve os seus eleitos, perguntai: quem são esses eleitos, pois que, no reino de Deus, os primeiros serão os últimos, e os últimos serão os primeiros.
O Pai distribui igualmente o seu amor, e ouve compassivo o soluço dos pequeninos. O Pai não abandonará o que disser em seu coração: Meu Pai!
Todos vós sois filhos de Deus – e Deus nunca exclui um só dos seus filhos.
Aquele que repele o dom de Deus tem no pecado o seu castigo, e, no renascimento a sua prova; e só entrará no reino dos céus aquele que triunfar da sua prova no renascimento.
Já vivestes – e os vossos pais tornarão a viver. Hoje o mundo já pode receber esses ensinos que os mestres em Israel não podiam compreender.
Há outras coisas, porém, que o mundo ainda não pode receber; mas o Evangelho será sempre a luz. Quem tiver ouvidos para ouvir, ouça.
Em verdade, pois, vos digo que muitos, tendo o orgulho nos olhos, não verão, e a soberba nos ouvidos, não ouvirão a palavra – e dirão: - É a obra e o espírito de Belzebu, como o disseram do Filho do Homem.
Ouvi a palavra:
Todos os dias são de Deus, porque Deus fez a sucessão e estabeleceu a luz: por isso, honrai todos os dias o Senhor vosso Deus, e clamai aos vossos pés: Pai nosso! Pai nosso!
O Senhor ouve as súplicas dos aflitos, tanto no sábado, como no domingo.
Não pergunteis em que dia devereis adorar o Senhor, porque Ele não indaga do dia, quando o chamais: Pai! Pai! Honrai, pois, a Deus todos os dias.
Honrai a Deus, na mansidão, na humildade do coração, na pureza de sentimentos, na caridade e na justiça – e glorificai-o, cumprindo a sua lei.
Guardai essas verdades, e tereis guardado o sábado.
Se no sábado os vossos filhos vos pedirem pão, buscai o pão para os vossos filhos – e tereis guardado o sábado.
O sábado é o dia em que se pratica a virtude; o sábado em que isto não se realiza não é sábado.
Eis a palavra de Jesus, o Cristo, no seu primeiro mandamento.
Eu - João
XVIII
"Honrai a vosso pai e a vossa mãe, aos quais Deus delegou uma parte do seu poder. Eles são uma manifestação visível da Providência divina, cuidando das crianças desde o seu nascimento".
Se virdes que o vosso pai infringe o preceito e não segue o caminho da virtude – cerrai os olhos e buscai esquecer o pecado do vosso pai, e rogai ao Senhor que apague esse pecado da sua presença.
Se o vosso pai for cego – que os vossos olhos sejam os seus olhos; se for tolhido, que os vossos pés sejam os seus pés e que as vossas mãos sejam as suas mãos; porque deles, por delegação do Pai, recebestes os vossos olhos, as vossas mãos e os vossos pés.
Nunca digais diante do vosso pai:
Existis, porque os vossos pais existiram, antes de vós. Sem eles, onde estaria a vossa alma e o motivo da vossa soberba? Que o nome dos vossos pais esteja sobre a vossa cabeça, e pelo nome dos vossos pais sacrifica o vosso.
Quando ouvirdes dizer que o vosso pai é pecador, defendei o nome dele, e se o pecado subsistir, chorai no vosso coração, rogai a Deus por esse pecado e buscai apagá-lo da vossa mente – e Deus honrará o vosso nome nos vossos filhos, apagará o vosso pecado na mente deles e dar-vos-á o galardão da vida eterna.
Honrai as cãs dos velhos. Os cabelos brancos do ancião são o testemunho da madureza do seu juízo, e as rugas do seu semblante são as letras de um livro escrito pelo dedo do Senhor.
Não desprezei o conselho do velho, nascido na oficina da sua experiência; o seu saber é muitas vezes amargo, mas a sua virtude atua sobre a alma e corrige os sentidos.
Honrai os ministros da palavra, que são os distribuidores da luz para aqueles que não a conhecem; porque, aquele que os honra, honra a luz e honra Aquele que a enviou.
Honrai o Filho na luz, e o Pai no Filho.
O que despreza os ministros da palavra, despreza a luz – e o que despreza a lua, despreza
Aquele que a enviou, despreza o Filho na luz, e despreza o Pai no filho.
Os ministros da palavra são árvores de vida para os homens, e devem ser conhecidos pelos seus frutos.
O que pratica a humildade e fala a sabedoria – o que vive na pobreza de coração e só prega
a paz – o que abre a sua mão e o seu seio aos que vivem na humilhação, e diz sem temor a verdade aos poderosos; o que vela enquanto os outros dormem; o que ergue a voz para denunciar o perigo; o que tem puro o pensamento e vive nessa pureza de pensamento; o que diz em sua alma: eu não sou digno; esses são os ministros da palavra, e a bênção de Deus os segue, porque a palavra deles é a bênção e aplaina os caminhos do Senhor.
Nem todos os que dizem: Senhor! Senhor! Senhor! são ministros da palavra, mas sim aqueles que cumprem a vontade do Senhor.
Surgirão falsos ministros da palavra, mas os seus caminhos serão obstruídos e o seu julgamento estará nas suas mãos e nos seus pés; porque a árvore da mentira não pode dar frutos da verdade.
Dirão: abominai os bens do mundo – e a alma deles vive nas riquezas e nas comodidades; aconselharão a humildade - e o orgulho lhes reside no coração e nos olhos; dirão – seja misericordiosos e caritativos - e na boca se lhes aninham a injúria e a maldição, e acumulam o ouro e a prata, afrontando a miséria dos outros.
Pregarão a mansidão – e guardam o ódio contra os seus inimigos, considerando-os como obra de zelo pelo Senhor; dirão: sejam honestos – mas a lascívia domina nos seus desejos, e o adultério, nos seus leitos.
Esses não são os ministros da palavra, mas sim – hipócritas, e por isso os seus ensinos são abomináveis. Se da sua boca saem palavras de verdade – essa boca é indigna da palavra e profana o dom de Deus. Ouvi as suas palavras da verdade, mas conservai-vos alertas e não vos deixeis surpreender pelas suas intenções. São os sepulcros branqueados, de que fala Jesus.
XIX
Ouvi a palavra:
Amai – amai - amai.
A letra é: Não matareis – o Espírito é: Amai.
Amai o vosso amigo e o vosso inimigo – amai o pobre, o rico, o menino, o ancião, o santo, o pecador, o homem e a mulher. Eis o Espírito.
O que vos ofende, ofende ao vosso irmão – e não ofendereis o vosso irmão naquilo que vos não ofende. a ofensa seria perversidade de coração – e no coração estará o castigo.
Não se mova a vossa língua, nem a vossa mão, nem o vosso pensamento se levante contra um dos vossos irmãos. Deixai nas mãos de Deus as ofensas que vos falam – e só movais as vossas para a misericórdia.
Aquele que em pensamento ofende o seu irmão, consuma uma ofensa aos olhos de Deus, porque o pensamento é obra do seu espírito, e seu alimento é o filho da sua concepção.
O que infringe a lei, sem danificar o seu irmão, pode purificar-se pela expiação; mas, ao que ofende a seu irmão, são necessárias: a expiação e a reparação.
Se a ofensa foi feita em pensamento, a reparação também o será; se foi por palavra, será por palavra; se foi por obras, será por obras.
Ninguém será justificado da ofensa feita ao seu irmão, enquanto subsistir o dano e não estiver saldada a dívida contraída.
O juiz da lei condenará o devedor ao cárcere, donde só sairá quando tiver pago o último ceitil da sua dívida.
Todos vós sois irmãos; não há um só de vós que não seja filho do Pai, como Jesus o disse.
Amai-vos, pois, uns aos outros com amor de irmãos, se quereis que o Pai celeste vos ame, como a filhos.
Se virdes que o vosso irmão tem fome e sede, e comerdes e beberdes sem vos lembrardes da fome e da sede de vosso irmão, não sereis filhos do Pai celestial, e padecereis fome e sede.
Se virdes a nudez em vosso irmão, e tiverdes uma túnica e não a rasgardes para cobrir a sua nudez não sereis filhos do Pai celestial, e padecereis de nudez; porque, o pão, a água e o linho, são dons de Deus para todos os filhos do seu amor – e o que monopoliza esses dons, em prejuízo do seu irmão, é um ladrão e frustra o amor do Pai e a sua providência.
Não se ria o vosso coração, quando o coração do vosso irmão chorar; juntai as vossas lágrimas às dele – e os anjos do Senhor recolherão as vossas lágrimas e o Juiz da lei escreverá com elas o julgamento dos vossos pecados.
Fazei ao vosso irmão todo o bem que estiver nas vossas mãos, mas por amor do bem e não com a vista no prêmio; porque, se obrardes esperando a recompensa, o vosso coração é indigno da obra e do prêmio da obra.
O prêmio das obras é perecível, mas a recompensa do coração nunca morrerá.
O bem que fizerdes ao vosso irmão, fazei-o em silêncio e que a vossa mão esquerda ignore o que faz a direita; pois, o bem que faz ao som de trombeta, não nasce da caridade, mas do orgulho do coração.
Aquele que entende que há mérito no bem produzido por suas mãos, está longe da perfeição de Espírito; porque o bem é a lei do Espírito, e o homem que assim obra, nada mais faz que cumprir a lei.
Não dividais no coração, os vossos irmãos em bons e maus; porque Deus faz brilhar o Sol para o culpado e para o justo. Todos cabem no amor do Pai – e não sois o juiz dos vossos irmãos.
Qual dos vossos irmãos é justo? Qual o pecador? Já vistes as suas almas? Não façais, portanto, seleção entre eles.
Quem julga o outro, provoca com o seu orgulho o julgamento dos seus pecados.
Outro mandamento eu tenho para dar-vos: Perdoai aos que vos ofenderem e dai sempre o bem pelo mal – é essa a perfeição na caridade.
O que dá o bem pelo bem, obram como costumam fazer os pecadores e os ímpios que procedem segundo a carne; mas, aquele que ama o seu inimigo e lhe faz o bem em troca das ofensas, obra contra a carne e imita os anjos do Senhor.
Essa é a palavra de Jesus Cristo no segundo mandamento – e toda a lei contida no primeiro e no segundo mandamento.
Ouvi a sua palavra e receba a sua luz. Guarde a palavra de Jesus Cristo.
Eu – João
XX
Jesus fazia muitos prodígios em testemunho da verdade das suas doutrinas, porque, do seu corpo, saía a virtude que curava as enfermidades do corpo, e da sua boca e dos seus olhos saía a luz que sarava os males do espírito.
Por isso, todos os seguiam em multidão e procuravam ouvir a sua voz e abrigar-se à sombra do seu corpo.
Quem é esse profeta? diziam. Será o verdadeiro Messias que o Deus de nossos pais prometeu a Abraão, a Isaac e a Jacob? e alguns queriam adorá-lo.
Os sacerdotes, porém, os príncipes dos sacerdotes e os fariseus diziam: Ele obra pelo espírito de Belzebu; porque a sua palavra condenava a soberba dos doutores da lei e o seu fausto; e resolveram matá-lo.
Por isso, se escandalizavam com os prodígios que ele fazia no dia de sábado, e concitavam as turbas contra Ele, alegando o seu zelo pela lei e o seu amor a César.
Por isso, e pela iniqüidade dos seus corações, Jesus dizia aos discípulos: Se a vossa justiça não for maior que a dos escribas e fariseus, não entrareis no reino do meu Pai.
Mas, estava escrito que o Cristo havia de morrer em confirmação da palavra profética e para redenção de todos. Ele não o ignorava; humilhava-se à vontade do Pai e queria morrer em testemunho da luz do Pai, a fim de que todos os homens fossem salvos.
Orou no horto em companhia de alguns de seus discípulos, e, depois de orar, foi preso pelos soldados; porque Judas, um dos doze, o havia vendido aos sacerdotes pelo dinheiro e com a malícia do seu coração.
Depuseram contra ele testemunhas falsas – e não encontraram motivo para matá-lo. Mas, as profecias tinham de ser cumpridas; e, em seu cumprimento, foi ele carregado de opróbrio e de dores pela iniqüidade dos homens, e erguido em uma cruz entre dois homens infames.
Expirou na cruz, perdoando aos seus verdugos e encomendando o seu espírito ao Pai.
XXI
Não choreis a morte de Jesus; regozijai-vos antes, pois Jesus não morreu. A sua morte foi o sono da justiça e a ressurreição gloriosa, do Filho, no seio da felicidade do Pai.
A sua vida foi vida para os vivos – e a sua morte foi vida para os vivos e para os mortos; porque o Espírito puríssimo de Jesus, ao abandonar o corpo, levou a palavra da redenção aos Espíritos que, por seus pecados, estavam no cárcere; e a palavra de caridade, aos
Espíritos de justiça, para que uns e outros buscassem o cumprimento da lei e fizessem, os primeiros, obras de redenção, e, os segundos, obras de glória.
Por isso, disse o Apóstolo que o Evangelho também foi pregado aos mortos.
Depois de três dias o corpo de Jesus desapareceu das vistas dos homens, e não foi mais achado sobre a Terra, mas os discípulos o viram no seu corpo espiritual, ouviram a sua voz e puderam tocá-lo como as suas mãos; porque vacilavam na sua fé e não acreditavam ainda firmemente na revelação do Cristo, nem na ressurreição espiritual.
Ainda depois de o terem visto e tocado, eles temiam e não confessavam; e continuavam a temer e a não confessá-lo, até que a verdade penetrasse nas névoas do seu entendimento e
o Espírito do Senhor inflamasse os seus corações na fé.
Ainda pela terceira vez, e eu com eles, viram o Espírito de Jesus e ouviram a sua palavra, e essa palavra era de paz e caridade, como quando ele vivia entre nós e falava ao povo.
Encarregou os Apóstolos da prédica do Evangelho e de batizarem os homens no seu nome e no da sua doutrina; não na água, como fazia João Batista, mas no Espírito, como Jesus, porque, o que se faz na carne, é carne, e o que se faz no espírito, é espírito.
De novo, em nome e por inspiração de Jesus, recomendo aos pastores o batismo em espírito e em verdade, que é o selo dos filhos de Deus.
Mas, Jesus prometeu aos apóstolos a sua luz e a sua assistência, e, neles, isso também foi prometido a todos os discípulos do Evangelho e filhos de Deus, até a consumação do presente século e do século vindouro; e, envolvendo-os em seu resplendor e no amor da sua
inolvidável e divina vista, ele elevou-se ao Pai.
Testemunhei isso, caros irmãos.
Eu – João
XXII
Depois disso, os discípulos, em cumprimento da palavra e da vontade de Jesus, foram e pregaram a todos o que tinham ouvido do Mestre.
O Espírito de Jesus estava nas palavras deles e o que diziam era sabedoria e caridade.
O fogo da palavra e a sabedoria inflamavam os corações fracos e confundiam a sabedoria dos mestres; e muitos acreditavam no Senhor Jesus e adoravam em presença do Deus do Senhor Jesus.
Os crentes foram batizados na água, que era a figura do batismo do espírito na fé.
O batismo da água, porém, é inútil e não tem virtude, sem o batismo no espírito, que é tudo, como o atesta Paulo, falando da circuncisão do prepúcio.
A palavra de Jesus, porém, era áspera para os poderosos do mundo e feria os corações ensoberbecidos; e o Cristianismo nasceu e levantou-se sobre rios de lágrimas e lagos de sangue, porque os potentados do mundo e os demônios pretendiam fazer abortar a semente e destruir o Espírito de Jesus; mas a semente multiplicava-se com o sangue derramado e o Espírito soprava aqui e ali, e era o Espírito de Jesus; e os potentados do mundo e os demônios da Terra foram vencidos, porque o Espírito de Jesus assenhoreou-se dos palácios e das cabanas.
Soou, porém, a hora. Ai dos vencedores! As nuvens cobrem o firmamento e o Sol se obscurece; porque a humildade; que é o Espírito do Cristo, se esconde e o orgulho da vitória aparece; porque a caridade, que é o Espírito do Cristo, retira-se do coração, no qual penetra o sentimento da maldição; porque a pureza do coração; que é o Espírito do Cristo, foi escarnecida e as comodidades e o fausto atrai e domina as vontades dos que se dizem discípulos do Cristo; porque a tolerância e a mansidão, que são o Espírito do Cristo, se afastam diante da invasão da intransigência e do exclusivismo.
No átrio do templo, assentou o seu pé o espírito de seita e no presbitério o interesse passou a residir. No seio da igreja universal estabelecida por Jesus, sobre a pedra da fé e da caridade, levanta-se outra igreja pequena, firmada no lodo do egoísmo e na base da ignorância.
Os indoutos, os hipócritas e os soberbos da sabedoria adulteram para o povo o sentido das Escrituras, do que Pedro já se lamentava, falando das Escrituras e das palavras de Paulo.
As águas, em que o povo vinha saciar a sua sede, começou a correr turvas e lamacentas, porque os doutores da lei não se contentavam com a palavra e com o Espírito do Cristo e juntavam-lhes a sua própria palavra e o espírito da sua própria ciência.
Essa ciência, porém, era vã e corrompia as águas das fontes, porque saía do orgulho das entranhas deles e do seu apego às glórias do mundo e às comodidades, que não da caridade.
Olvidaram as palavras do Mestre, que disse que o último seria quem quisesse ser o primeiro de todos, e cada um quis ser o primeiro – e se estabeleceram primeiros, segundos e terceiros entre os doutores, contrariamente ao Espírito de Jesus - e o ultimo dos doutores acreditou estar acima de todos os outros, que eram do povo.
Porém, quando isso aconteceu, o Espírito do Senhor Jesus afastou-se deles. Tudo isso tinha de dar-se, para castigo dos pecados dos homens e cumprimento da misericórdia do Deus de nosso Mestre Jesus Cristo.
Então a igreja pequena; que tinha nascido no seio da igreja, cresceu despropositadamente e derrubou a igreja universal aos olhos da multidão; porque a multidão julgava que ela era a igreja universal, visto que a igreja universal se tinha retirado do templo, aí deixando a igreja pequena dos mercadores.
A igreja universal passou então a ter os seus altares no coração dos filhos do Evangelho, que são os discípulos do Cristo.
Em verdade vos digo que todo aquele que ama a Deus e ama também aos homens, está na igreja universal estabelecida por Jesus, como Ele o disse, e não aquele que foi batizado na água e não ama em seu Espírito.
Nesse tempo, os doutores pensavam mais na vida do corpo e nos gozos, que na vida do Espírito, e construíam palácios para os seus corpos; tinham fartura de pão, de vinho e de mel, e havia pobres.
Viviam no fausto, ao lado dos homens que choravam. E enganavam o povo, dizendo ser isso o Evangelho.
Juntaram mandamentos seus aos mandamentos de Deus – e fizeram muitos mandamentos, dizendo que isso era o Evangelho e enganavam o povo.
Seus nomes figuravam entre os nomes dos poderosos e dos dominadores da Terra – e o seu domínio era maior que o domínio dos príncipes; porque eles dominavam sobre a vontade dos homens e seus mandamentos tinham mais em vista esse domínio que a caridade.
Alguns cingiram a espada que mata e os demais não condenaram os que cingiram a espada; antes, nos seus corações ou nas suas palavras, aplaudiram-nos. E houve guerras por causa deles e irmãos se levantaram contra irmãos, por culpa da sua ambição.
Quando isso acontecia, invocavam o nome do Senhor para a guerra, diziam que a guerra era santa aos olhos de Deus, e afirmavam que tal era o Evangelho, enganando o povo e alguns deles mesmos.
Acostumaram-se ao domínio dos homens e cada vez mais foram alargando esse domínio, invadindo o domínio dos príncipes do mundo e o senhorio de Deus sobre as almas, porquanto quiseram julgar as almas – e julgaram-nas, e condenaram-nas.
Castigaram os corpos pelos pecados das almas e muitos homens sofreram a morte em nome do Cristo, dizendo eles que isso era o Evangelho, enganando o povo e mesmo a muitos de si próprios, em castigo dos seus pecados e dos pecados dos homens.
XXIII
Se ouvirdes dizer que o Evangelho de Jesus é a guerra e o derramamento de sangue, eu vos digo em verdade que esse é o Evangelho dos rancorosos e vingativos, mas não o de Jesus, que amou os homens e lhes pregou a paz.
Se vos disserem que o Evangelho é o fausto, as riquezas e as comodidades dos ministros da palavra, eu vos digo em verdade que esse é o Evangelho dos mercadores do templo, mas não o de Jesus, que recomendou aos seus discípulos a pobreza de coração e o desprendimento dos bens da Terra.
Se vos disserem que o Evangelho é a água, as mãos levantadas ao céu, as pancadas no peito, as formas e o culto externo, eu vos digo em verdade que esse Evangelho é o dos hipócritas, mas não o de Jesus, que recomendou o amor e a adoração a Deus em espírito e em verdade.
Se vos disserem que o Evangelho é a resistência às leis e aos princípios que governam os povos, eu vos digo em verdade que esse é o Evangelho dos rebeldes e ambiciosos, mas não o de Jesus, que mandou dar a Deus o que é de Deus, e ao príncipe o que é do príncipe.
Se vos disserem que o Evangelho é a intolerância, o anátema, a perseguição, a violência e o ódio, eu vos digo em verdade que esse é o Evangelho da soberba e da ira, mas não o de Jesus, que rogava ao Pai de misericórdia pelos seus mortais inimigos.
Tudo isso foi dito ao povo acerca do Evangelho.
Porque estranhais que João fale assim dos doutores e ministros da palavra? Porventura julgais que João venha dissimular e escurecer a verdade, que há de ser o alimento espiritual do povo?
Em verdade vos afirmo que vi aquilo que vos digo, e que vos falo em testemunho da verdade; porque o Evangelho é a verdade – minhas palavras são verdadeiras, em testemunho do Evangelho de Jesus - e o Evangelho de Jesus é o testemunho da verdade das minhas
palavras.
Não estranheis, portanto, que João fale assim dos doutores e dos ministros da palavra.
Eis o que digo à igreja pequena:
Acuso-te de haver deixado a tua primitiva caridade, aquele amor que te ensinou o coração de Jesus, e pelo qual ele morreu na ignorância das gentes, aquele amor puríssimo que abandonaste, para conceber o desejo de domínio, e o de perseguição pelo domínio.
Fizeste o teu reino neste mundo.
Acuso-te de haver abandonado a tua primitiva mansidão, aquela mansidão com que Jesus falava aos que o insultavam e nele cuspiam – e, deixada essa mansidão, te rebelaste contra os príncipes e minaste nas trevas os poderes da Terra.
Acuso-te de haveres deixado a tua simplicidade primitiva, aquela com que Jesus chamava a si os pequeninos; deixada aquela simplicidade, foste frágil com os poderosos e arrogante com os humildes do infortúnio.
Acuso-te de haveres deixado o teu primitivo desinteresse, aquele desinteresse com que Jesus falava dos bens da vida, sem nunca pensares no dia de amanhã – e, deixado esse desinteresse, buscaste amontoar riquezas, como os que se esquecem da vida do espírito e só visam as comodidades da carne, e, assim, apagaste a fé do coração dos homens que pensam em seu entendimento.
Acuso-te de haveres deixado a tua humildade primitiva, aquela humildade com que Jesus se abaixava aos pés dos seus discípulos – e, deixada essa humildade, consentiste que o orgulho se assenhoreasse do teu entendimento, usurpaste as chaves do céu, condenaste, salvaste, e te idolatraste a ti mesmo, fazendo um deus para o teu próprio entendimento.
Igreja pequena! não te maravilhes das palavras de João, antes as medite e chora – porque já soa a hora, e o tempo chega de surpresa, como o ladrão.
Igreja pequena! recorda dos teus princípios, dos que esqueceste. Eu, João, te digo: Teus dias não serão contados, desde que de ti se separou o Espírito de Jesus até à consumação do teu orgulho.
Volta a ti; converte-te ao Evangelho de Jesus e põe os teus olhos na misericórdia do Altíssimo Senhor, cuja vontade onipotente dispõe dos céus e da Terra.
Não vês que as almas mirram em teu seio, como as plantas privadas de água?
A tua palavra já não é a benéfica chuva, nem o orvalho consolador, mas sim o sopro frio do setentrião que gela os corações.
Igreja pequena! que fizeste da sociedade cristã? Olha ao redor de ti mesma, e responde.
Volve à tua primitiva caridade, à tua primitiva adoração, à tua primitiva mansidão, ao desinteresse e à humildade dos primeiros tempos do século de Jesus Cristo – e o Espírito de Jesus voltará a ti; serás a tua esposa; e ele o teu esposo, como nesses primeiros tempos.
Medita e ora – e repelirá o demônio do orgulho que te cega o entendimento; porque, então, conhecerás a lei que vem de Deus.
Não cerre os ouvidos às palavras de João, igreja pequena! porque, a palavra de João, João as escreve, os homens as lerão, e elas se fixarão na sua mente e no seu coração.
Dormes, Igreja pequena; desperta! Falo aos homens: Jesus é o caminho, a verdade e a vida.
Deus é a minha última palavra.
A paz seja convosco, irmãos.
Eu – João.
XXIV
Irmãos! volto a vós e vos saúdo.
Volto, como a pálida luz do astro da noite que vem à Terra, depois do Sol ter derramado sobre ela torrentes de luz, de fecundidade e de alegria.
O resplendor vivificante do sol dos Espíritos chegou até vós; bendizei a Deus.
Viajor da Terra, quanto me compadeço de ti e quanto te amo! Pobre viajor da Terra!...
As tuas penas são as minhas também; os teus males também são os meus, as tuas lágrimas são as minhas, como o teu esforço é o esforço da minha alma.
Acabo de chegar da Terra e ainda sinto as suas misérias. Pobre irmão, pobre viajor da Terra! O teu trabalho é uma felicidade que não conheces e de que duvidas, - e essa dúvida te lacera a alma. Quanto sofres, caro irmão, pobre irmão!...
Mas, ah! Volve os teus olhos para mim. Também o meu trabalho é a felicidade, mas uma felicidade que o meu espírito vislumbrou, verdadeira, como é verdadeiro o Sol que brilha todos os dias sobre ti.
E eu podia ter conquistado essa felicidade!... Estava ao alcance da minha mão... Um pequeno esforço, e seria minha!... Sim....seria minha!....seria minha!...E não fiz esse pequeno esforço! Lamentai-me, como eu vos lamento, caros irmãos!
Bastava-me amar!... e não amei, como devia.
Permiti, porém, que o meu pobre espírito, a seu turno, reflita sobre vós a pouca luz que pode receber das estrelas que brilham na profundeza dos céus.
Também a Lua alegra o coração do pobre viajor que atravessa de noite as solidões da Terra!
Viajores da Terra, quão dignos sois de compaixão! Viajais nas trevas, e não vedes o caminho em que assentais os pés.
Sem os astros que a Onipotente Mão derramou no seio do Universo, a Terra permaneceria eternamente abismada na obscuridade e no silêncio; e sem o calor e a luz dos Espíritos que vem cumprir a vontade do Altíssimo e os decretos da sua misericórdia, a Humanidade continuaria ainda hoje nas trevas da sua infância.
Meus Deus! sei que chegais até ao mais íntimos dos meus sentimentos: vede que já amo; Deus meu...não me abandoneis. Fazei aumentar o meu amor, Deus da minha alma, pois quero amar e só amar.
Vê o meu desejo, irmão? Ah! sim, vedes: mas não podeis senti-lo, como eu, porque ele é meu; porque eu o mereci e não vós; porque é o sofrimento que eu mesmo fiz nascer com a minha liberdade.
Entretanto, uma esperança consoladora alenta e fortalece a minha alma; não vi essa felicidade para perdê-la para sempre; porque Deus é Deus.
Vi João submergir-se nesse pélago de felicidades, e ainda ouço as suas palavras de amor e de esperança.
Ama e espera, como eu amo e espero, pobre irmão, pobre viajor da Terra!....
XXV
Há deveres reais, verdadeiros, inexcusáveis: disse-o eu ainda há pouco tempo, e disse-o quando ainda vivia entre vós. Mas, vós o sabeis sem que eu vô-lo diga, porque sabem-no todos os que pensam e sentem.
Também sabeis que o dever é a lei imposta pela sabedoria de Deus aos espíritos livres.
O cumprimento dessa lei é o cumprimento da vontade soberana, o laço de união e de atração entre o Criador e a criatura racional.
O dever é, pois, a religião.
Existindo, como existe, o verdadeiro dever, necessariamente também existe a verdadeira religião; de outra sorte, a religião não seria o dever ou a lei emanada de Deus sobre o espírito livre.
Qual será a verdadeira religião?
Antes, porém, permiti-me outra pergunta: Qual será o melhor das religiões?
Em absoluto, a melhor das religiões é a religião verdadeira; mas o absoluto está fora da capacidade humana.
O homem pode definir a religião verdadeira, dizendo que ela é, em absoluto, o cumprimento do dever, o cumprimento da lei; mas, nem o homem, nem os Espíritos podem abraçar a lei absoluta do dever.
O dever aumenta e estende o seu limite com o progresso e a felicidade. A vossa inteligência invade cada dia novos horizontes; mas, à medida que ela se desenvolve, a vossa responsabilidade aumenta e as leis do dever se acrisolam.
A religião é, por conseqüência, progressiva, como o é o dever, que constitui a sua essência; e o melhor das religiões é a que melhor promove o cumprimento do dever. Em relação ao homem, a melhor das religiões é a religião verdadeira.
A religião verdadeira é o Cristianismo, porque é a única que dirige a Humanidade pelo caminho reto do dever. A palavra de Jesus, em alguns séculos, realizou progressos que nunca seriam realizados pela virtude de todas as outras religiões reunidas.
Há manchas que parecem empanar a religião do Cristo; mas estas procedem das formas que pertencem aos homens, e não do principio divino que é a alma da religião cristã. A religião de Roma não é a religião do Cristo; porque o dever que Roma prega não é o dever verdadeiramente cristão.
O dever, na boca do Filho do homem, é o amor na liberdade; porque, sem a liberdade, é impossível o amor; e Roma condena a liberdade e exclui do amor de Deus os que não aceitam os ensinos dela. Recordai-vos de Jesus e das catacumbas; meditai, comparai e julgai.
Jesus oferece a sua vida em holocausto pela salvação de todos os homens e recomenda a caridade, que é o amor a Deus e ao próximo, sem exclusão de publicanos e gentios. Os cristãos dos primeiros dias, escarnecidos, humilhados, vilipendiados e perseguidos como animais daninhos, como cães hidrófobos, cuja vida estava à mercê de todos, reúnem-se debaixo do solo para chorar juntos a imensidade do seu infortúnio. E do fundo das catacumbas se eleva um piedoso murmúrio de adoração que, penetrando e atravessando a Terra e o espaço, chega como uma nuvem de incenso até o trono do Altíssimo. Um clamor unânime sai de todas as orações, e uma mesma palavra pronuncia todos os lábios: Liberdade. Liberdade para adorar a Deus ao meio dia, à luz do Sol; liberdade para se reunirem e praticarem o amor, sem receio dos insultos da populaça e do ódio dos tiranos.
Recordai-vos de Jesus e das catacumbas – e julgai se a religião de Roma é a religião de Jesus Cristo, se o anátema e o exclusivismo são o amor e a liberdade.
O dever, na boca do Filho do homem, é a paz, porque, sem ela, não há liberdade, e sem paz e liberdade não é possível o amor. E Roma intenta contra a paz dos povos, quando a guerra satisfaz as suas aspirações de predomínio moral ou material. A guerra não está no
Evangelho, meus irmãos!
A morte paira neste momento ao redor de vós.
A discórdia agita o seu repugnante archote e ateia nos corações, nos corações criados para o amor, o ódio e a vingança. O ferro e o fogo são os emissários da morte e os homens sucumbem aos milhares, e a maldição é a ultima palavra arrojada pelos seus lábios nas últimas convulsões.
Todos os ouvidos estão aguardando a infausta nova; todos os ânimos estão cheios de ansiedade e de sobressaltos. Os ecos e o fragor do combate voam do Ocidente ao Oriente e penetram na cidade dos Césares e dos Papas. Também há ali corações que palpitam de emoção, esperando o desenlace do trágico drama que se desenrola aos vossos olhos. Mas ah! aqueles corações não palpitam de amor, mas sim de ansiedade, desejam a glória de uns e a derrota de outros, ainda que nessa derrota milhares de famílias tenham de verter lágrimas de sangue, de desespero e de infortúnio.
Uns arvoram o estandarte do progresso, os outros escrevem na sua bandeira o santo nome de Deus. E eis aí o nome de Deus, nome que os lábios não deviam pronunciar senão para venerá-lo e abençoá-lo, no entanto, é apresentado como uma senha de ódio e de guerra na bandeira arvorada pela ambição e pelo fanatismo religioso.
Abatei este estandarte profanado, apagai dele o nome cem vezes sagrado do Altíssimo! Julgais que inpunemente se pode brincar com o que há de mais santo na Terra e nos céus?
Irmãos! lembrai-vos de Jesus, e, fixando a vossa atenção na guerra abominável que enche os corações de luto e a terra de cadáveres, dizei-me se o dever, se a paz, se o amor, se a liberdade e se a religião de Roma são o dever, a paz, o amor, a liberdade e a religião de Jesus, o verdadeiro Cristianismo.
Mas a hora está prestes a soar; já se escapam os últimos grãos de areia da ampulheta que assinala o tempo da existência da igreja, a que João chamou igreja pequena.
E essa igreja morre nas suas próprias mãos, por causa da perturbação que produziu nas entranhas dos organismos sociais. Quis fazer da sua religião uma bandeira política, e morre as mãos da política.
Perturbou as crenças para melhor e mais facilmente dominar os povos, e morre por causa da perturbação das crenças.
Em sua agonia, fomenta rebeliões nos Estados que sacudiram o seu pesado jugo, e ateia o fogo da guerra para prolongar por mais um minuto o seu domínio temporal, e as rebeliões e a guerra apressam a terminação desse domínio.
O instante supremo se avizinha, não o duvideis, mais um momento, e a igreja pequena não será mais para os homens que uma triste recordação.
Assim sucederá, porque é preciso que suceda; do contrário, a Humanidade estaria irremissivelmente perdida, e Deus não pode permitir que a Humanidade se afunde para sempre no abismo.
Não sabeis quão ínfima já é a igreja pequena dos mercadores, porque não vos é dado esquadrinhar o coração dos homens. Sabê-lo-eis no dia em que se resolvam a falar muito; muitíssimos dos que hoje choram em silêncio as abominações religiosas.
É considerável o número dos que choram e são ainda contados no seio da igreja pequena.
Eles buscam a igreja universal, e, como não a vêem, choram em silêncio e esperam. Surja uma pequena réstia de luz e eles correrão para as portas da igreja universal.
A decadência da igreja pequena não vem de hoje, nem de ontem, a sua verdadeira decadência data dos dias em que os seus mandamentos começaram a visar o domínio e o interesse.
Ela foi a estátua de Nabucodonosor, começou por ser de ouro no regaço da igreja universal estabelecida pelo Cristo, e acabou por ser de barro nas mãos dos homens.
A estatua de Nabucodonosor é a imagem de todas as instituições puramente humanas, e a igreja pequena já não é mais que uma instituição talhada em moldes puramente humanos.
Mas as molas que sustentavam e conservavam a igreja pequena, desde que o Espírito de Jesus a abandonou, já perderam toda a sua força, e a instituição humana, a igreja dos hipócritas e dos mercadores, abate-se sob o peso dos próprios mandamentos e erros, ao alvorecer da luz da liberdade e do dia da emancipação das consciências.
A pedra que há de derrubar e reduzir a pó a estátua de barro, já se desprendeu do cimo da montanha e desce com ímpeto soberano; impelida pelos mensageiros do Altíssimo.
Ai! de quem buscar conter-lhe o ímpeto! Apartai-vos. Não vedes que ela vem movida pela vontade de Deus.
XXVI
Os grandes acontecimentos são sempre precedidos de anúncios ou sinais para fixar a atenção dos homens na importância do fato que vai realizar-se, a fim de despertar os que dormem.
O fim da igreja pequena é um acontecimento solene, o mais solene e importante de quantos a Humanidade tem presenciado, porque o fim da igreja de Roma é o começo da igreja universal e o estabelecimento da doutrina de Jesus no entendimento e no coração dos pobres desterrados da Terra.
Os séculos vindouros saudarão com júbilo essa jornada, com o júbilo com que saudais a encarnação e a memória do Cristo. Por isso, o fim da igreja pequena, que é o começo da igreja universal, vem precedido de sinais maravilhosos, que vereis multiplicar-se à medida
que os tempos avancem.
E os tempos se precipitam, porque tudo conspira para isso, mesmo aquilo que parece aos homens empecilhos ou obstáculos.
O sinal que precede ao fim da igreja pequena e ao começo da igreja universal é o ensino manifestado dos Espíritos, derramado com maravilhosa e misericordiosa profusão, de um a outro extremo da Terra.
E o ensino dos Espíritos vem, porque é absolutamente necessário; pois é tal o vácuo que há nas crenças, que a humanidade não poderia despertar sem esse auxilio superior.
Antes, porém, do fim da igreja pequena de Roma e do começo da igreja universal de Jesus Cristo, vereis ainda outro sinal:
Ouvir-se-á uma voz que soará por toda a parte.
Recordai-vos do Espírito de Verdade prometido por Jesus Cristo – e esperai-o despertos e preparados.
Os pobres filhos dos homens; os infelizes viajores da Terra, ouvirão essa voz suave e atraente, como o murmúrio da brisa e como o perfume da flor, e verão o céu aberto, porque os seus corações se abrirão à esperança e a fé.
Esses tempos vêm pertos; podeis pressenti-los, podeis vê-los, porque estão no vosso horizonte.
O Sol aparece obscurecido aos vossos olhos; algumas nuvens vos impedem de ver todo o esplendor da luz; mas essas nuvens serão varridas por uma vontade soberana, e a verdade brilhará em toda a sua pureza.
Mais um momento, e vereis cumpridas estas palavras.
Irmãos congregados; adorai a Deus.
Despeço-me de vós, deixando-vos o espírito de caridade, de humildade e de adoração do nosso Mestre Jesus Cristo.
A paz seja convosco e com todos os homens.
Lamennais
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